terça-feira, 27 de julho de 2010

O sorriso




Espreguiço numa cadeira.
Os pés descansam e acariciam a Pipoquinha deitada à bebé. O nosso contraste: pés cor de chocolate na brancura alva e macia.
O calor é muito, muito. A tarde já [quase] terminou, mas o calor nem [sequer!] pensa em seguir para outras paisagens. Dormito ao sol, ao ar escaldante, vindo do Norte de África, ligeiramente arrefecido pelo Oceano Atlântico. Entrego-me ao embalo do som vindo das ondas suaves e tímidas, que não me querem perturbar.

Esta [aparente] calmaria é interrompida pelo ruído que tão bem reconheço... Não preciso abrir os olhos para me certificar, sei...sei apenas...que és tu !

- "Importas-te de calar essa chaleira velha?! Estás a acordar a minha filha!"

Não preciso olhar...sei-te...sei-te demasiado...sei-te que estás a sorrir. Esse sorriso!
 O semi-silêncio é reestabelecido e reconheço o som abafado dos teus passos:

- " A tua filha...não está a dormir..."
Sinto o dorso da Pipoquinha contrair-se de satisfação, mas apenas abana a cauda, em sinal de reconhecimento. Está demasiado calor para se mexer...

Mantenho os olhos fechados, adivinho os teus movimentos. Sinto-te acocorar para afagar a Pipoquinha [fazes sempre isto...conheces-me bem; há um misto de satisfação e entrega...tu sabes...e tudo aquilo que não dizemos!]. Retiro os pés, não há nem pode haver nenhum contacto...tu sabes... eu sei!
Sinto a sombra do teu corpo nas minhas pernas [a sombra, não, não é fresca, é quente, tão ou mais quente que este ar, vindo do Norte de África...] e entreabro os olhos, é instinto puro e duro, é desejo camuflado, é...apenas é. Ver-te a meus pés...tu sabes...percorro-te lentamente, uma vez mais, caminhos que tão bem conheço [ainda!], por baixo da pólo preta: o pescoço largo, os ombros forte, os braços, os pulsos, as clavículas e omoplatas, o vale da coluna até ao cinto...detenho-me na orelha, pequenina, em proporção ao rosto quadrado, o cabelo rente, bem aparado por detrás da orelha, a têmpora, o arco da sobrancelha...por baixo, esse olhar, esses olhos castanhos, castanhos como os meus, em que me perco, para jamais me encontrar. E o sorriso, ah, o teu sorriso: fui apanhada a olhar. Perdida, uma vez mais!

-" Sai, que me fazes sombra!"
A dureza das palavras morre-me na boca num fio de voz, não sendo suficiente para desarmar esse sorriso. Levantas-te e fico em desvantagem: agora, tens a mesma visão que tive há instantes...mas o sorriso permanece. Endireito-me, tentando reduzir a distância entre nós [ou será a tal aproximação que não conseguimos entender nem definir...?]

Molhas um dedo na tua boca e passas-mo na cara:
- "Olha para ti, estás branca de sal!"
- "Oh, 'tou toda assim, parece que não é hábito, passei o dia na água" - e, exemplifico, levantando o vestido.
- "'Tou a ver, 'tou!" - esse sorriso escanqueirado, igual ao meu, de olhar fixo em mim.
- "És tão parvo!" - refuto, num misto de prazer e fingida indignação, levantando-me.

Porquê que ficamos sempre, mas sempre tão próximos, quase, quase a tocarmos um no outro?!

- "Jantas comigo?"
- "Nã, vou pra cima, tu jantas muito tarde, M. ...janta lá na tua Torre..." - tento disfarçar, nesta dança de 2 pares de olhos castanhos que não se desprendem.
- "Mas voltas." - afirmas, com convicção.

E não volto sempre? Leve aceno, em sinal de concordância - tu sabes que sim!
- "Pelas 11 e tal, meia-noite, 'tou aqui" - garanto - "com este calor, vou dormir debaixo dos pinheiros. Sinto-me mais segura, sabendo-te por aqui..." - confesso.
- "Eu sei, querida" - e, nesta frase pronunciada em voz rouca, por um instante, dás-me o Mundo.

São as palavras que calamos, são os nossos olhos que se prendem [quantas vezes me dizes: "Os teus olhos falam por ti..."], este semi-tocar permanente, que não conseguimos explicar ou impedir.

O mesmo Mundo que partilhámos esta manhã, ainda noite, dividindo a estrada deserta, nossa cúmplice.





3 comentários:

Anita disse...

:) momento bonito :)

maria teresa disse...

Sem palavras! Tanta ternura, tanta cumplicidade, tanto amor,...
Abracinho

Ana Alvarenga disse...

Anita, são de uma vida inteira ;) Bj

Querida Maria Teresa, always the same old story ;) BEIJO