domingo, 21 de março de 2010

Dias Cinzentos



[este dia, o de anteontem, era/é especial…porque tinha algum “contorno” e por ser o Único Dia MARCADO PARA…que eu levo(va) a sério e com agrado…talvez por isso, seja tão difícil suportá-lo…]

- Já viste?! Se não fosse eu, tu não tinhas dia, papi…
- Tens razão, filhotinha – soltava numa gargalhada, enquanto me abraçava, depositando um beijo nos meus cabelos.

Nestes cabelos, iguais aos seus, fortes e espessos, “a tua mãe tem cabelo de rato”, referindo ao “tipo chinês” da minha mãe. Os seus cabelos, lambidos frontalmente de branco, fartos e lisos [tal qual os meus, mas negros como os corvos], que domava com ph7 (um produto tipo gel, tipo brilhantina, sei lá), mas que lhe conferiam um ar tão charmoso e aristocrático; “sempre conheci o teu pai com cabelos brancos”, era a máxima da minha mãe. “A genética quis que saísses à mãe”, que só pelos 50 e muitos lhe apareceram os primeiros cabelos brancos, dai eu não ter nenhum ainda…Mas tudo o resto, diziam, “é igual ao pai”…”Não, os olhos são da mãe”, respondia o meu pai, embevecido.

- Papi, esta gente…quer dizer com isto que eu sou homem ou…que tu és um pouco amaricado? – largava numa gargalhada.
- Deixa-as…são Princesas do Sado! – rindo-se também.

O meu pai tinha expressões para tudo, próprias, private-jokes que só nós entendíamos. O meu pai era um “gigante”, que me ia buscar ao colégio sempre que podia; eu, pequena criança detentora de um apurado 6º sentido, sabia sempre que era ele, pelo tocar da sineta:

- Irmã, abra depressa, porque é o meu pai! – e corria em direcção ao portão. Várias vezes os meus joelhos “sentiram” a calçada-portuguesa do pátio, nesta correria para os seus braços. Este “gigante” levava-me a lanchar antes de irmos para casa e ler-me as Aventuras de Simbad, o Marinheiro…

O meu pai gostava da minha companhia; diversas vezes, quando eu era muito pequena e no tempo da “gasolina barata”, levava-me ali, a Madrid, a Sevilha…só porque queria ir ao Corte Inglês ou aos Preciados. A minha mãe estava sempre demasiado ocupada/cansada para nos acompanhar, íamos só os dois, horas e horas de viagem, ir e vir no mesmo dia, a cantarolar as canções da rádio, que sabíamos de cor… Sempre que o trabalho lhe permitia, o meu pai levava-me para todo o lado…sei que gostava mesmo da minha companhia!

Fui crescendo, até ficar a pouco mais de um palmo do “gigante”, que nunca me pediu satisfações de nada, nunca impôs horários, nunca criticou a minha roupa ou os meus penteados de adolescente, e “sobreviveu”, com um sorriso, às fases pop/rock, à rebaldaria total, à hippie-chic, à quase-queque-chanel…gostávamos da companhia um do outro, apenas. Entendíamo-nos como ninguém…
Dele herdei a morenice, a estatura, a estrutura óssea, o humor, a descontracção…nunca o vi chateado nem zangado, excepto quando a minha mãe mandava cortarem-me o cabelo “à rapaz”. O meu pai sempre quis ter uma menina [ao contrário da minha mãe, que preferiria um rapaz e nunca mo escondeu…] e, quando nasci, deixou-nos na MAC e foi à Conservatória registar-me com o nome que escolheu, sem pedir palpites a ninguém, nem à minha mãe… . Cansado, sim, muitas vezes, das directas a trabalhar, mas, mesmo assim, ia-nos levar, muitas vezes, à Costa, para o nosso fim de semana não ser afectado pelos seus turnos descontrolados.
Por isso, quando fiz 18 anos, foi menos um “fardo”:
- Filhotinha, tu não podes entrar num cruzamento a 60 km/h…- ria-se.
- …não vem ninguém – justificava-me, infantil.
- Mesmo assim, não podes – e continuava a rir-se [talvez por sua “culpa”, hoje abrande tanto nas entradas das rotundas…]

O meu pai que me ajudou a escolher o meu primeiro chasso “para não me enganarem, vens comigo, papi?”, que me acompanhou na 1ª conta bancária que abri [com o meu dinheiro, dos meus trabalhinhos de férias], que me levava aos exames, para eu “não me enervar” e esperava que o exame decorresse, para me trazer de regresso: “Correu bem?”, “Correu, papi, vamos lá ver…”
O meu pai que contava histórias da Guerra do Ultramar, “só a parte boa”: os animais, as frutas, o sol, a paisagem, o cheiro da terra, a chuva, a vegetação, as cidades e os cinemas, as esplanadas…e “transportava-me” por terras africanas, mesmo sem nunca lá ter posto os pés.
O meu pai que “fechava” os olhos aos meus namoricos, que esteve sempre presente quando dele precisei, que me ensinou técnicas de defesa pessoal, “só em caso de ser mesmo necessário”, que me comprou uma boa mala de ferramentas para o carro: “mesmo que não saibas fazer nada, com elas, quem souber utilizá-las pode ajudar-te” [ele próprio, só sabia meter combustível – ríamos – mecânica e electrónica não lhe diziam nada…]

O meu pai amava a Beleza: dos carros, das mulheres, dos relógios, dos animais. A Beleza, em todo o seu esplendor e onde quer que se encontrasse. Não era homem de futebol, nem de cafés, nem de copos. Não era homem de homens, era homem de mulheres [a bicharada que tivemos…sempre meninas, à excepção de um cão]. Bebia, de vez em quando, em casa, um gin tónico… e eu fugia a 7 pés do cheiro da água tónica, bahh, ouvindo as suas risadas e gritando “Isso é bom para desentupir canos!”. Mas foi com o meu pai que aprendi a gostar de cerveja e a reconhecer um bom vinho, apesar de, actualmente, eu não beber.

- És um teddyboy, papi – ria-me ao afirmá-lo. Saíamos com frequência, e o meu pai era o último a estar pronto, enquanto a minha mãe e eu retorcíamos os olhos de impaciência…tudo tinha que estar impecável: o barbear perfeito, com creme-hidratante pós-barbear [por isso, adoro homens de cara macia, habituei-me sempre a sentir essa agradável sensação], o perfume, a roupa impecável [“que gravata fica melhor?”, consultava-me com frequência], os sapatos, sempre de atacador, a brilharem, as meias pretas a acompanharem. O meu pai…foi sempre um vaidoso! E gastava “fortunas” em roupa, deixando-nos de cabelo em pé, às 2 forretas da casa….Se fosse hoje, seria um metrosexual… Bom conversador, mulheres de todas as idades não o largavam! E eu ria-me, porque o meu pai era só meu! E eu era a menina do papá, sem dúvida alguma…Sem asfixias, sem opressões.

O meu pai abria-nos sempre a porta do carro, à minha mãe e a mim, sempre, sempre! Mesmo quando os carros passaram a ter fecho centralizado [ou lá como se chama], fazia questão de o fazer! E só não repetia o gesto à saída, porque ambas somos demasiado impacientes para esperar! Foi o único homem que conheci que o fizesse, sempre…no entanto, não o incomodava fazer o jantar [hum, refeições preparadas pelo meu pai eram um pitéu…], ir às compras domésticas, ou até mesmo estender/apanhar roupa! Era um homem a sério, sem se importar com a opinião dos “outros”… muito à frente para o seu tempo!


 
Tudo isto e muito mais passa pela minha memória, e grossas lágrimas escorrem…”não posso chorar, tenho que pintar os olhos, caramba”, repito ao espelho, “ele não me quer ver chorar…”, mas é inevitável! “Livra, logo hoje que tenho 2 reuniões, p****”! Atiro com as pinturices para dentro da mala-assoalhada e escondo-me em grandes óculos, negros, negros como a minha alma. Recorro aos acessórios favoritos, hoje preciso de tudo, de tudo e de todos…e nada parece resultar!

(…)
Terminada a reunião, liguei-lhe:
- Estou despachada, terminou mais cedo, thanks God! Mas aviso-te que estou uma grande porcaria…
- Estou ai em 20 minutos. Onde queres ir almoçar?
- Decide, hoje quero que tomem conta de mim, estou cansada de decidir, de ser forte, muito cansada…qualquer sítio, sossegado, onde não ouça o barulho dos talheres…mas olha que estou de rastos.
- Ao Ténis, pode ser?
- Perfeito, adoro! E podemos dar uma volta nos jardins, enquanto preparam o almoço. E tem um parque de estacionamento…amplo e quase deserto…podemos dançar, se nos apetecer. Quero dançar…um slow do nosso tempo. Só preciso estar na empresa um pouco antes das 5 h, para a outra p*** de reunião …hoje não adianta, não presto para nada, não dá...


(…)
- Hoje é dia do Pai - diz-me a G., recepcionista-segurança do prédio, ao ver-me regressar, mas perante a minha expressão, esconde o sorriso – ainda tem pai?
- Tenho…- e as lágrimas voltam a visitar-me – apenas já cá não está…
- Não chore… está tão linda – consola-me no seu sotaque da Beira Interior.
- Só por fora, G. Ando a chamar a Primavera, mas ela não quer ouvir… – indico o céu cinzento lá fora… - Há dias muito complicados…para todos.


(…)
- … faleceu a minha avó! – lastima-se J1.
- Ai, rapaz, que chatice! Que m***! É a tua avó, do teu avó que me contaste aquilo que …?
- Não, é a mãe da minha mãe…E a minha mãe ligou-me algumas 20 vezes, mas eu estava com o chefe e não pude atender. Para lhe ligar, fui à casa de banho…
- Não faças isso – interrompo-o, aos gritos – nem que estejas com o Papa: pai, mãe, irmão, namorada …atendes sempre! Sempre, ouviste?
- O pior é que … com a m*** de vida que levamos, não a via há imenso tempo! – recrimina-se.
- Estava doente, a senhora?
- Não, tinha 84 anos… foi a dormir…
- Pensa que não sofreu, pensa nisso, não te martirizes, pensa que não sofreu, é o que todos desejamos… - insisto, numa vã tentativa de o animar.
- Eu sei… não diga a ninguém. Ainda vou visitar outro cliente e depois vou para casa…
- Não digo…mas se precisares de conversar, liga-me, a qualquer hora que seja! Vai já para casa, a tua mãe precisa de ti…
- Não posso, está marcado… - despede-se num murmúrio.


(…)
- Vou levá-la para casa, no fim de semana. Não aguento andar a correr para o Hospital e ela fica a chorar quando me vê…ontem, mandaram-me embora, estava muito agitada e dobraram a dose de morfina.
- Leve, leve! Tem condições, tem conhecimentos, fará bem a ambas! Vá já buscá-la, livre-se do trânsito, é sexta-feira…
- Eu tive uma unidade de Cuidados Paliativos montada em casa, para a “avó” dela, em estado muito pior. Porque não a hei-de levar? O Hospital está sempre aberto e se morrer, ao menos, morre em casa… - AG andou todo o dia a espreitar-me por cima dos óculos e por debaixo da juba… a observar-me, a “ler-me”, mas só agora temos um bocadinho…
- Não morre nada… e depois, a Ritona “ficou-lhe” nas mãos, numa Área de Serviço há quase 2 anos… vá já buscá-la, sossegam as duas…
- Não posso, ainda lhe vão fazer exames às 7 h…só depois…mas vou levá-la, pelo menos no fim de semana!

(sms horas depois: “Já estamos em casa”)

… há dias cinzentos… há dias negros… há dias de todas as cores…


1 comentário:

Anita disse...

Bolas...

Dias marcantes...

Recordações que ficam por bons e por maus motivos.