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Myra
de Maria Velho da Costa
Um romance que parte da relação de amizade que uma adolescente russa imigrada em Portugal estabelece com um cão de raça perigosa e que conta com magníficas ilustrações da pintora Ilda David
Na cena de abertura deste romance, Myra encontra Rambo, um cão de combate ferido, numa praia atravessada por «carris desconjuntados», «chorões apodrecidos» e marcas das «marés vivas sujas de crude». O narrador assinala: «O céu estava baixo e muito escuro.» É uma caracterização meteorológica, claro, mas também metafórica. Durante o resto da narrativa – embora aqui e ali se assista a uma aberta – o horizonte das personagens permanecerá igual ao céu da primeira página: opressivo, de um violento negrume, sempre à beira da tempestade devastadora.
Myra é uma rapariga russa que deambula pelas paisagens tristes do Portugal contemporâneo, em fuga rumo ao Sul, mas com esperanças de voltar ao Leste de onde emigrou. Durante a longa jornada iniciática, sempre com o Pitbull Terrier por perto, ela revela um extraordinário instinto de sobrevivência, feito de «manha e força». Conforme as circunstâncias, ora cita Camões, ora fala como a lerdinha que não é. E assim vai avançando por entre «criaturas íngremes», através dos vários círculos do Mal, num mundo cheio de «dor e dano».
A primeira parte do romance é composta por uma sucessão de encontros on the road: com um camionista alemão, amante de uma pintora desbocada que faz lembrar Paula Rego; com um padre, heterodoxo ao ponto de dizer que «a castidade é porca» (enquanto transporta na sua carrinha uma mulher a morrer de SIDA); com um marinheiro cego e maneta chamado Alonso (como o herói do Quixote); entre outras personagens menores. Isto até descobrir Orlando/Rolando, um «rapaz pardo» que lhe aparece todo vestido de branco junto a um Land Rover também branco, «parado como um dócil corcel expectante». A partir daqui, a história como que estaca na esfera deste cabo-verdiano, a quem Myra se entrega num idílio amoroso, cortado cerce por uma cena de carjacking que precipita de vez a acção no mais sórdido sub-mundo do crime.
II Capítulo
«Era noite cerrada. O camionista Kleber segue pela faixa da direita. As traves de madeira estralejam por detrás da cabine. Ora se vê, ora não se vê bem o perfil hirsuto, ruivo, de Kleber. A miúda vai sentada ao seu lado com o cinto de segurança por cima da manta de que só tira uma das mãos para afagar a cabeçorra do cão aos pés. E para ter comido o hamburger que Kleber lhes comprou na estação de serviço.
Os antigos egípcios acreditavam que era um deus-cão, Anubis, que os conduzia na barca dos mortos, diz Kleber.
Eu queria que este se chamasse Tzar, mas eles não deixaram. Que era falta de respeito. Ficou César.
Vem a dar ao mesmo, Sónia. Um nome é um destino. E depois?
Não é não, senão a pessoa mudava de destino cada vez que mudasse de nome. E depois, já lhe contei, só que comecei pelo fim, quando o Senhor Kleber me apanhou na berma, toda encharcada, com o César neste estado.
Myra continuou a bela narrativa. Kleber não parecia espantado, nem incrédulo. Como se tudo na vida fosse possível.
Depois eles fizeram-me vir de lá tinha eu seis anos para eu não ficar ladra como os meus irmãos. A minha avó chorou muito. Eu vim de carrinha em carrinha. Ninguém tinha papéis, mas os que me iam trazendo tinham sempre dinheiro e onde ficar. Quando cheguei aos meus pais não os conheci. Eles também choraram muito mas eu chorava mais com saudades de casa da avó, que era muito pobre mas tinha um quintal e às vezes lá conseguia que eles lhe dessem dinheiro para comprar um ganso que ela engordava com sobras de pão seco e couves do quintal. Isto no Verão porque no Inverno passávamos muito frio a pedir na neve à porta de S. Basílio e das entradas quentes do Metro, até nos enxotarem por causa dos turistas. Escumalha russa, diziam, escumalha russa.
Santa mãe Rússia, disse o Sr. Kleber, abrandando para deixar passar uma carrinha com um carregamento de fardos de palha. Para lá cortiça, para cá palha e betoneiras. Santa mãe Mundo. O cão vai vivo?
Vai sim, agora que comeu e bebeu água da chuva. E vai quente.
E Myra afagou o que não seria mais Rambo.
Vais bem, César?
E o cão agitou a cauda.
Bom, bom, também sabia mentir.
E depois? disse o Sr. Kleber. Como foi cá? Desamarra-lhe a corrente. Há para aí um cinto, o bicho no estado em que está não precisa de levar tanto ferro no cachaço.
Tantos cuidados, pensou Myra. Se eu tiver que fugir deste, como é que faço?
E continuou com a sua narrativa mirífica pela noite e estrada dentro. Clareava. Havia plainos e sobreiros descarnados e casas caiadas, com os pés, as portas e as janelas em azulão. Casas caiadas. Já não estavam na auto-estrada mas num ramal bordejado de mimosas em flor. Pode-se ser morto e esquartejado em qualquer lugar, mas Myra, ladina, não tinha muito por onde escolher. Nem que ele lhe pedisse uma mamada e isso ela tinha aprendido a fazer.
Falta muito? perguntou Myra, no desvio do descampado deserto, agreste de árvores cinza na madrugada, rebanhos de ovelhas e bois com a cabeça descida à terra ocre, de fome, de sono.
Falta o que falta da tua história. E o Sr. Kleber sorriu.
Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta do paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja.
O Sr. Kleber é professor?
Não, mas fui bem ensinado. Não como crianças e muito menos carne de cão. Ora diz lá, que até chegarmos há tempo.
O que é uma herdade, senhor Kleber?
É aquilo que se herda, mas também se compra e vende.
É sua, a casa?
São várias casas, como cogumelos aos pés de um castanho, que é a patroa, na Casa Grande. É para lá que vais. E depois? Há quanto tempo tens o cão, Sónia?
Há cinco anos, mentiu Myra mais.»...mas fica, apenas, o pensamento.
2 comentários:
Olá! Vim agradecer a sua amabilidade! É bom saber que existe alguém que gosta do nosso "trabalho".
Não li o livro, mas fiquei curiosa... Devo confessar que não leio tanto quanto a minha mãe... O tempo é escasso e com dois miúdos pequenos... Há séculos que ando a tentar ler um livro que ela me ofereceu. Sabe como se chama? "Educar sem gritar"!!!!
Beijinhos e volte sempre!
P.S.: Estive imenso tempo a jogar aos salpicos!!!
Faz rir, Ana Rita, tem a quem sair!!! Achava-me eu talentosa até conhecer o seu espaço magnífico...
Leve os salpicos e perguntarei à sua mãe se não terá, por acaso, o livro "Viver sem gritar" :)))...Um beijo grande, voltarei, sim, e é sempre aqui desejada!
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