sábado, 25 de abril de 2009

Dias de Abril

Lembro-me pouco, mas lembro-me de uma manhã cinzenta, pelas 7 h da manhã, eu olhava a rua da janela da sala, onde a minha mãe, entrou, de rompante e de semblante carregado: “Sai imediatamente dessa janela”, seguida do meu pai, que, mais calmo, informou: “Hoje não vais à escola”.
E é o que me lembro do meu dia 25 de Abril.

Mas lembro-me bem de antes, da sala de aulas com a fotografia do Prof. Marcelo Caetano, das meninas de batas, da professora (Sra. Directora Maria José), de passeios nas férias, de carro, cá dentro e por terras de Espanha (o escudo era mais forte que a peseta e Barcelona não era nada antes dos Olímpicos…), Andorra, alguma França e um pouco de Itália. Ficávamos em pensões (“desde que sejam asseadas”, ouvia a minha mãe) ou em hotéis modestos e íamos sem nada planeado. Todos tínhamos passaportes, incluindo eu, desde os 3 anos e sempre viajamos de carro, que o meu pai trocava a cada 3 anos e sempre novos…
Se não havia liberdade, eu nunca senti, o lema da minha mãe era (e é): “Sem trabalho, não se consegue nada”.
Antes, a minha mãe andava comigo ao colo e depois pela mão, a qualquer hora do dia ou da noite, como diz, sem qualquer receio (o que hoje não acontece para ninguém…)

MFA? Sabia lá o que era…Mário Soares, Álvaro Cunhal, nunca ouvira falar, comunistas, sabia lá o que era isso… cantarolava “Grândola” e “Uma gaivota voava” como as outras crianças, sem compreender significados…


Nos dias ou meses que se seguiram, acho, compreendi algumas coisas: ouvia-se uma rádio inglesa, baixinho, para tentar saber outras notícias que cá não eram divulgadas. E que iam dar a Independências ao Ultramar. Para mim, esse Ultramar era onde o meu pai tinha estado 4 anos, porque “Angola é nossa”. De lá, contava as histórias que eu gostava de ouvir: dos animais à solta, das mangas e das mangueiras a que subia para as comer e reforçar o rancho de combate, a selva (ou o mato, como lhe chamavam), nos banhos nos rios, combateu sob as ordens do General Spínola, definindo-o sempre como “um homem bom e justo”, de Angola, da casas bonitas, da baía, do cinema, onde via filmes do Carlitos e da Sarita Montiel…os episódios menos bons nunca foram revelados.
Da nossa família, só o meu pai foi ao Ultramar. Nenhum dos meus tios foi e um irmão da minha mãe fugiu a salto para França, para escapar…E a minha mãe culpava essa Angola pelos 4 anos de atraso na vida do então namorado, com quem veio a casar, mais tarde do que pensavam, por causa “da malvada Guerra”, era como lhe chama(va).

Lembro-me, não sei quanto depois do dia de hoje, da minha mãe me dizer, com ar preocupado: “O teu tio teve que ir à fábrica de Angola, para falar com os trabalhadores, e agora fecharam-no lá”. E lembro-me de um dia qualquer virmos de carro para a minha escola e haver pessoas (como nós) a obrigarem-nos a parar, para revistar os carros. Aflita, perguntei: “E vão ficar com o meu peixinho?”, indicando o globo de vidro com um peixinho vermelho (na altura, o único animal de estimação que a minha mãe permitia…) que levava cuidadosamente no colo. “Não”, respondeu-me o meu pai, virando-se para mim, sorrindo. E não, aquela gente só queria ver a bagageira…”Somos pessoas de trabalho”, dizia a minha mãe, através do vido aberto, numa alusão clara às afirmações de Otelo Saraiva de Carvalho, que queria meter os fascistas todos na Praça do Campo Pequeno, para os fuzilamentos (não o fez, mas mais tarde, organizou as FP25 de Abril).

Lembro-me que o meu pai foi despedido-afastado-saneado-exonerado-whatever do Aeroporto, onde trabalhava. A minha mãe sempre manteve o emprego, mas, mais tarde, tivemos que mudar de casa… E deixámos de passear tanto como fazíamos, porque “a gasolina está muito cara”. E no decorrer dos anos, o meu pai continuou a comprar carros novos, mas não com a mesma frequência de antigamente…E deixamos a casa de férias e de fins de semana, alugada “ao ano” (era muito habitual, nesses tempos), porque as rendas dispararam porque havia falta de casas…Anos mais tarde, mudei de escola (foi “a última coisa”, como conta a minha mãe, que sempre apostou na educação). Devido ao trabalho dos meus pais, e mais tarde, ao meu (que trabalhava nas férias desde os 15 anos para os “meus supérfluos” e trabalhei e estudei alguns anos, porque “Somos pessoas de trabalho” e tenho muito orgulho nisso), nunca faltou absolutamente nada, mas nada mesmo, tivemos sempre uma vida equilibrada e confortável, porque “se não trabalharmos, ninguém nos dá nada”, apregoa a minha mãe.

Quanto ao meu tio, veio de Angola com saúde, mas passados uns meses, a depressão e os problemas nas fábricas levaram-no ao suicídio…fui eu quem o encontrou. Pessoas que conhecíamos defenderam as suas terras empunhando caçadeiras, para o povo não as tomar, sob o lema “A terra a quem as trabalha”

Portanto, quando me falam do 25 de Abril, pergunto-me onde está aquele “Povo unido jamais será vencido”? Aquela gente que acreditava num dia melhor para todos. Não foi, foi para meia-dúzia, para as Faty’s, para os Isaltinos, para os de Gondomar, para os Freeport, para a Expo e para tantos e tantos outros…não foi para esta actual escandaleira nacional que os militares fizeram o 25 de Abril…foi pela liberdade. E onde é que ela está?

É óbvio que a proibição de ler, ver, ouvir, falar, etc o que queremos é errado. Qualquer ditadura é de combater. Lá por casa, sempre houve liberdade. Hoje é que não a temos, com receios de carjacking, de assaltos e tudo a toda a hora.

F. e muitos dos meus amigos têm histórias parecidas com as minhas, algumas bem dramáticas.

Para mim, o Major Salgueiro Maia, o verdadeiro Capitão de Abril, será sempre um ideal de herói, a quem (também) o destino tramou…
Mas, para mim, a verdadeira Capitã, não de Abril, mas de toda uma vida, é a minha mãe. Qual Padeira de Aljubarrota, nunca a vi baixar os braços…
Este é um pedaço da minha história e não voltarei a falar dela.


Coloco aqui este cravo...foram proibidos pela minha mãe há 35 anos.

4 comentários:

S* disse...

Bem, isso sim é uma recordaçao do que foi o 25 de Abril. O 25 de Abril deveria ser recordado como o fim do "castigo" de tantos milhares de portugueses.

Parabens pelo texto.

Ana Alvarenga disse...

Obrigada, Sanxeri.
Devia e é, sem dúvida! Só equaciono, às vezes, se o "castigo", de facto, acabou, sobretudo para os portugueses que queriam, e bem, um Portugal Livre...(gosto do seu blog, sobretudo da foto!)

MAP disse...

Tela, li comovida o teu 25 de abril, muito semelhante ao meu em lembranças. a minha mae ensinou-nos que se alguém perguntasse de que gostava o meu pai deveríamos responder "bacalhau com batatas". o meu avô (quase teu vizinho) se fosse vivo, de tão desgostoso ficou com os "26 de Abril" para a frente com tudo o que viu e ouviu mudou radicalmente e disse "o 25 de abril não entrou nesta casa" e a minha avó que tanto gostava de cravos foi proibida de os ter em casa.lembro-me de revistarem os carros mas como sempre tivemos cães e na altura pastores alemães não se atreviam a entrar. revistavam o porta-bagagem à procura de armas. tempos conturbados. o meu avô perdeu quase todo o dinheiro com as celebérrimas acções Fides e passou a usar gravata preta de luto pela pátria.

estive a explicar a minha afilhada o que era o estado novo, o 25 de abril o porquê da revolução dos cravos. parecia que me estavam a explicar a revolução francesa. não sei o que ensinam nas escolas mas do que me tenho apercebido, os "estudos" vão de mal a pior.

obrigada por partilhares as tuas lembranças.

Ana Alvarenga disse...

MAP, beijo grande, e obrigada por seres como és. Já tínhamos falado de como a Revolução mudou as nossas vidas...De certeza que não foi isto que queriam para o nosso país, mas sim sonhos e ideais de liberdade...